Anos 1960, Guerra Fria e corrida espacial. Na Zâmbia, um professor universitário, Edward Makuka Nkoloso, funda a Academia Nacional de Ciência, Pesquisa Espacial e Filosofia sem nenhum apoio governamental. O plano era mandar uma menina de 17 anos, chamada Matha, e dois gatos à lua. Depois, quem sabe, ir até Marte. Tudo num foguete feito de alumínio e cobre.
Edward chamava os participantes do seu programa espacial deAfronauts – que, não por coincidência, é o título do filme que falaremos hoje no Cinema Preto.
Por que assistir Afronauts?
O curta-metragem dirigido pela queniana Frances Bodomo tem a história do programa espacial zambiano não apenas como inspiração, mas responde diretamente a esse desejo lunático. A diretora teve contato com essa história ao encontrar um vídeo de uma reportagem britânica de 1964 que entrevista Edward e acompanha o trabalho desenvolvido por ele. No fim do vídeo, o jornalista diz: “Para muitos zambianos, essas pessoas são um bando de malucos e, pelo o que vi hoje, eu tenho que concordar”.
Frances, no entanto, não está interessada se era possível ir à lua com o tipo de pesquisa e investimento desse grupo, mas questiona: a que custo? O pano de fundo do curta é um pouco diferente: já estamos em 16 de julho de 1969, e um grupo de cientistas está tentando chegar à lua antes dos americanos. Afronauts tem gatos, Matha, treinamentos, mas explora o clima pré-lançamento.
A animação dos pesquisadores contrasta com a preocupação, silêncio e alienação da astronauta. Matha é interpretada por Diandra Forrest, uma menina albina, característica que intensifica o deslocamento visual de Afronauts. Frances explica que o albinismo da protagonista é um mecanismo duplo: “para mim, o tipo de pessoa no mundo que coloca sua vida em risco é alguém que está passando uma insegurança em relação ao seu pertencimento, uma pessoa que tem que provar o seu valor ao grupo, uma pessoa que ainda é o ‘outro’”
O colonialismo é outra preocupação de Afronauts. A Zâmbia conquistou sua independência do domínio britânico em 1964 e, enquanto outras nações africanas lutavam por independência, os Estados Unidos e Rússia brigavam para ver quem chega mais longe num território espacial. “Matha, mãe dos exilados, diga à eles que estamos chegando. Não imponha o cristianismo a eles, não imponha uma nação a eles”, diz um dos cientistas à escolhida ao voo interestelar. Se há um desejo zambiano em ir à lua, ele existe também para fazer diferente, para ter o direito à não colonização do espaço.
Afronauts sabe que é mentira, mas quer fazer você duvidar da realidade principalmente através de suas imagens em preto e branco, que às vezes são quase documentais e às vezes psicodélicas. Assim, a possibilidade de um bando de malucos africanos conquistar um mundo interestelar é irrelevante. Tudo é um sonho, tudo é também possível. Afinal, as consequências são tão reais quanto à realidade, se você permitir.
Terceiro ato
Afronauts está disponível no Vimeo e no Youtube. No Youtube, o vídeo tem legendas automáticas, elas não são perfeitas, mas são úteis.
Ano passado, participei de uma conversa com o pesquisador e escritor Waldson Souza sobre afrofuturismo e ficção especulativa para o podcast do Vozes Pela Diversidade. Acho que esse bate-papo pode complementar o entendimento desse filme.
Pós-crédito
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Afronauts (2014)
Direção e roteiro: Frances Bodomo
Elenco principal: Diandra Forrest, Yolonda Ross, Hoji Fortuna
Fotografia: Joshua James Richards
Direção de arte: Peter Davis, Randi Barker
Editora: Sara Shaw