Essa foi uma semana de datas importantes: Stevie Wonder fez 71 aninhos e foi o Dia da Abolição na quinta-feira (13) e Ruth de Souza completaria 100 anos na quarta-feira (12). Por isso, no Cinema Preto, vamos celebrar o centenário de uma das maiores atrizes brasileiras assistindo Filhas do Vento (2005), do diretor Joel Zito Araújo.
Por que assistir Filhas do Vento?
Vamos começar com um pouco de honestidade, esse não é o melhor trabalho de Ruth. Assim, como também não é o melhor trabalho de Léa Garcia, Taís Araújo e Thalma de Freitas. No entanto, Filhas do Vento é uma obra criada para e, de certa forma, sobre Ruth de Souza, se tornando, então, uma amostra perfeita para falar sobre o trabalho dessa artista brasileira.
Ruth começou sua carreira no Teatro Experimental do Negro (TEN), iniciativa artística e educacional criada por Abdias do Nascimento para criação de um teatro preto no Rio de Janeiro. De lá, a atriz foi a primeira mulher negra a encenar no Theatro Municipal do Rio, a ser indicada como melhor atriz para o Festival Internacional de Cinema de Veneza em 1954 e a primeira a protagonizar uma telenovela em 1969.
Em Filhas do Vento, a artista interpreta Cida, uma atriz que já na fase final da sua carreira acompanha as frustrações de sua sobrinha que também sonha em trabalhar com televisão e cinema no Brasil. Na fase mais jovial da sua vida, Cida é interpretada por Taís Araújo que dá o tom de sonhadora para uma menina do interior de Minas Gerais que tem suas ambições constantemente limitadas pelo lugar que habita e pela família.
Filhas do Vento é o primeiro longa-metragem de ficção de Joel, mas tente entendê-lo como uma continuação – inesperada, eu entendo – ao documentário A Negação do Brasil (2000) sobre a presença de atores negros no televisão brasileira. Na narração, Joel confessa
as dificuldades que teve em guardar na memória a participação de negros nas novelas na década de 1970, por exemplo, pois se recusava ver seu grupo racial somente em papéis em situações de inferioridade social e cultural. Esse incômodo é menos evidente nos anos seguintes, mas ele ainda existe.
Por isso, é lógico afirmar que se em A Negação do Brasil, o diretor se indigna com a falta de papéis tridimensionais para artistas negros, ele tenta criar, com Filhas do Vento, oportunidade para esses atores brilharem.
O resultado não é excepcional, é fácil notar que os atores ficam engessados a um texto clichê, a cadência do filme é bastante monótona e Filhas do Vento fica entediante em alguns momentos. Os problemas são compensados com um elenco estelar – que também tem Milton Gonçalves, Zózimo Bulbul e Rocco Pitanga – que envolve e faz o espectador se apegar à história.
Ao falar sobre sua carreira, Cida tem uma postura semelhante a de Ruth e outras atrizes da mesma geração em A Negação do Brasil: a de sacrifício e sobrevivência. A narrativa de receber muito pouco – em papéis de inferioridade, sim – mas transformá-los com força e talento. Essas atrizes não buscavam apenas espaço, mas agência. E, nesse quesito, Filhas do Vento não pode ser criticado. O drama tem uma narrativa de irmãs, mães e filhas que podem existir em toda sua complexidade e explorar seus desejos mais intensos e secretos.
Uma das cenas mais bonitas que tenho em minha memória com Ruth não está em Filhas do Vento, mas no documentário Pitanga (2017), co-dirigido pela atriz Camila Pitanga, sobre a carreira de seu pai. Nele, Camila fecha seus olhos para receber as bênçãos de Ruth. Eu amo essa cena porque acredito que as carreiras dessas duas atrizes não estejam separadas. As barreiras quebradas por Ruth abriram portas para o trabalho de atrizes mais novas. Os estereótipos agora são de “figurante de filme do Spike Lee”, mas os caminhos são mais possíveis.
Terceiro ato
Filhas do Vento está disponível no Youtube. E A Negação do Brasil também pode ser encontrado na plataforma.
Eu citei rapidamente Pitanga (2017), disponível na Amazon Prime, mas é um filme que vou trazer com mais calma em outro momento desta newsletter pois preciso de muitos parágrafos para tentar explicar todo o carisma e sensualidade de Antônio Pitanga. Como não amar esse homem Brasiiiil? (leia, por favor, com a entonação do Gil do Vigor para fazer sentido).
Outro assunto paralelo é que estreou hoje Underground Railroad, série criada e dirigida por Barry Jenkins. A série tem dez episódios e é adaptação de livro de mesmo nome escrito por Colson Whitehead.
E outra notícia mais paralela ainda, criei com uma amiga um podcast sobre No Limite chamado Papo Sem Limites! A ideia é ter um resumão e uma troca entre amigas sobre o reality da Globo. Então, se quiser ouvir 30 minutos de alienação e comentários sobre sobrevivência no calor do Ceará, dê play aqui.
Pós-crédito
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Filhas do Vento (2005)
Elenco principal: Ruth de Souza, Léa Garcia, Taís Araújo, Thalma de Freitas, Milton Gonçalves, Zózimo Bulbul, Rocco Pitanga
Direção: Joel Zito Araújo
Roteiro: Di Moretti e Joel Zito Araújo