A última semana foi difícil para quem ama cinema e ama a cultura brasileira. O incêndio e tragédia mais do que anunciada da Cinemateca veio como um golpe. E em meio a tanta revolta, tristeza e incerteza em relação ao nosso cinema, história e memória, foi difícil escrever algo que fizesse algum sentido. Mas para retomar o Cinema Preto depois dessa pequena pausa, voltamos com Ôrí (1989), documentário dirigido por Raquel Gerber e narrado e escrito por Beatriz Nascimento.
Por que assistir Ôrí?
O documentário, que é o encontro das pesquisas da cineasta Raquel Gerber e da historiadora Beatriz Nascimento, é produto de um trabalho realizado em 11 anos, entre 1977 e 1988. A produção de Ôrí, então, registra o momento de efervescência política e ideológica dos movimentos negros brasileiros desse período enquanto traça, através do pensamento de Beatriz, conexões do negro com a história de seu povo no Brasil e no continente Africano.
É impressionante como muitas discussões registradas em Ôrí são contemporâneas e, ainda, relevantes em 2021 e continuarão a ser necessárias em dez, vinte ou quarenta anos. Isso acontece pois o trabalho de Raquel e Beatriz não é o de constituir um documento histórico que apenas descreve quem é o negro na década de 1970 ou quem foi o negro no século 17. A missão do documentário é construir um guia em que o negro possa se encontrar enquanto indivíduo.
É evidente que o registro histórico é um dos pontos importantes do filme. Em 11 anos, Ôrí registra o nascimento do Movimento Negro Unificado, o surgimento do Dia da Consciência Negra, o Centenário da Abolição e a aproximação desses movimentos negros com outros movimentos abolicionistas e libertários de países americanos e africanos. Mas esses acontecimentos não limitam a existência do documentário.
É no terreiro e nos bailes black, é no encontro de Gilberto Gil com Jimmy Cliff, é tanto nos desfiles das escolas de samba como nos ensinamentos da cultura bantu que Beatriz Nascimento localiza o ser e existir negro nas décadas de 1970 e 1980. É também no passado, presente e futuro que a historiadora articula seu próprio existir.
Se o registro histórico é um dos atrativos mais importantes de Ôrí, registrar o trabalho de uma das maiores pensadoras brasileiras talvez seja o seu maior feito. Acompanhar o processo de descobrimento do negro, é ouvir Beatriz falar sobre sua família, história e espiritualidade; é acompanhar uma mulher negra produzindo conhecimento sobre Zumbi, quilombos e ancestralidade.
São diversos os momentos desse documentário que me tocam, que me fazem pensar sobre memória e história no Brasil e que também me fazem refletir sobre quem sou e minhas articulações com passado, presente e futuro. É extremamente triste falar sobre tornar histórias visíveis dentro de um processo de destruição da nossa história nacional coletiva, mas agora só sei que o Cinema Preto existe porque Ôrí existe e porque continuo seguindo os ensinamentos de Beatriz Nascimento.
É preciso a imagem para recuperar a identidade. Tem-se que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade; então, eu conto a minha experiência, e não ver Zumbi, que para mim era o herói.
Terceiro ato
Ôrí está disponível na TamanduáTV. O aluguel do documentário é R$4,90, mas o streaming tem outros planos de assinatura.
Pós-crédito
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Ôrí (1989)
Direção: Raquel Gerber
Roteiro: Raquel Gerber e Maria Beatriz Nascimento
Edição: Renato Neiva Moreira
Fotografia: Hermano Penna
Composição: Naná Vasconcelos