No Cinema Preto desta semana, vamos conversar sobre o filme francês La Noire de… (1966), e já esclareço que, com a mesma ousadia que corrigi uma amiga a dizer pain com sotaque francês nessa manhã, vou deixar o título original mesmo. Bom, a escolha do filme senegalês é menos prepotente do que a atitude descrita anteriormente. La Noire de… foi traduzido para o inglês como Black Girl (Menina Negra, em tradução literal), mas a perda da preposição “de” faz muita diferença para o entendimento do título e da obra. Como não encontrei uma convenção para o português, vou deixar no francês.
E sei que você deve estar pensando que se eu já comecei falando sobre traduções e preposições, o clima desta sexta-feira vai ser aquele mix delicioso da cinefilia em tom de texto científico. E você não está muito errado: La Noire de… é um filme africano dos anos 1960, branco e preto, em francês,mas ele é inteiramente contado a partir do ponto de vista de Diouana, uma jovem senegalesa que trabalha para uma família rica francesa e essa é uma perspectiva original para uma história comum.
Por que assistir La Noire de… ?
A primeira vez que conhecemos Diouana, interpretada por Mbissine Thérèse Diop, ela está desembarcando na França, terra natal de seus patrões e onde vai trabalhar a partir de agora. “Alguém veio me esperar?”, ouvimos em francês enquanto a jovem senegalesa procura alguém ou algo que possa lhe dar alguma direção.
A decisão em estabelecer toda comunicação em francês, até mesmo os pensamentos de sua protagonista, não foi a primeira escolha de Ousmane Sembène, mas ela é muito emblemática para La Noire de… Terceiro filme do diretor senegalês, a obra foi criada logo após o processo de independência de Senegal em 1960 e, mesmo com forte clima anticolonial, o cineasta precisou reescrever seu roteiro em francês para receber financiamento.
Os monólogos internos de Diouana são a maneira que a protagonista se expressa e se conecta com o espectador. E mesmo ali, em seu lugar mais íntimo, a língua falada é a do colonizador.
No entanto, a potência de La Noire de… não se perde na tradução. A crítica de Sembène, diretor creditado como precursor do realismo cinematográfico africano, é direta. Ao olhar dos patrões, Diouana é vista como um animal ou objeto exótico. Para eles, a única identidade possível para aquela mulher africana é subalternidade e servidão.
Diante desse jogo de poder e dominação, La Noire de… não se acanha. Os patrões nem precisam de nome, mas a protagonista e heroína tem história, passado, amores, sonhos e frustrações. Sair da França e conhecer um pouco da vida de Diouana em Dakar traz alívio para o espectador que quer ver essa mulher existindo longe da prisão que é sua vida na cozinha, sala, quarto e banheiros franceses.
Diouana tenta lutar contra um contínuo processo de humilhação e desumanização e, é difícil admitir, suas armas são escassas. Mas é nesse embate que La Noire de… ganha força e razão para existir. A batalha para nossa heroína é impossível de ganhar, mas o que significa escancarar essa realidade para o cinema francês? O jogo de Sembène é muito maior e, além de Diouana, a África tem passado, presente e futuro.
Terceiro ato
La Noire de… está disponível no Youtube.
Pós-crédito
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La Noire de…
Elenco principal: Mbissine Thérèse Diop, Anne-Marie Jelinek e Robert Fontaine
Direção e roteiro: Ousmane Sembène
Edição: Ousmane Sembène
Fotografia: Christian Lacoste