20 de novembro, dia da Consciência Negra, momento para honrarmos nossos ancestrais e lembrarmos da resistência daqueles que vieram antes de nós. Também dia que o Brasil deixa evidente que o debate racial é questão de sobrevivência.
Mesmo assim, seguimos. O Cinema Preto traz hoje sugestões de dois clássicos e marcos para a discussão de representatividade no cinema brasileiro: Orfeu Negro (1959) e Alma no Olho (1973). Então respira, que eu coloquei meus óculos de palestrinha do cinema brasileiro especialmente para este texto.
Um Brasil estrangeiro
Orfeu Negro é um filme divisivo. De um lado, temos a glorificação internacional que fez a obra filmada no Rio de Janeiro com elenco quase inteiramente negro ganhar a Palma de Ouro, Globo de Ouro e Oscar. De outro, artistas, intelectuais e críticos brasileiros que consideram o filme “exótico, comercial, sem valor artístico”.
O longa é uma adaptação da peça Orfeu da Conceição, escrita por Vinicius de Moraes, que transporta o mito grego de Orfeu e seu amor por Eurídice para o Rio de Janeiro da década de 50. A adaptação do roteiro ficou nas mãos do diretor francês Marcel Camus, que viveu no Brasil durante os anos da produção e fez contato com diversos artistas brasileiros para contribuir com sua obra.
Assistir ao filme agora – em 2020 – exige colocá-lo em contexto. Orfeu Negro é um filme gringo, essa não é uma crítica, mas um fato. Em diversos momentos, o diretor francês utiliza longas cenas que mostram o Rio de Janeiro e seus personagens através de seu olhar estrangeiro: irreal, colorido, alegre, performático e sensual. Dessa forma, é fácil ver porque o filme foi – e ainda é – criticado por retratar um Brasil exótico, um produto destinado para um público internacional.
Mas essa falta de compromisso com a realidade brasileira é também uma das qualidades de Orfeu Negro. Há uma magia e surrealismo que prospera nas imagens criadas pelo longa. Isso é particularmente notado nas atuações e, especialmente, em Serafina, interpretada pela hipnotizante Léa Garcia. Prima da protagonista Eurídice, Serafina se estabelece como um fio condutor da narrativa: ligando os personagens e os conduzindo para onde a história precisa seguir. Léa faz isso com humor e uma energia sedutora, e enche nossos olhos de alegria.
Legado
Escrito, produzido, dirigido, atuado e montado por Zózimo Bulbul, Alma no Olho é a realização de um artista que dedicou sua carreira para construção de um Cinema Negro no Brasil como proposta política, com o negro como autor e não mais apenas assunto.
Realizado a partir de sobras do negativo de Compasso de Espera (1970), longa dirigido por Antunes Filho que tem Zózimo como protagonista, Alma no Olho é diretamente influenciado pelo livro do líder dos Panteras Negras Eldridge Cleaver, Alma no Exílio, e narra a experiência do negro na diáspora Africana.
Em 11 minutos num curta em preto e branco, Zózimo interpreta personagens diferentes em diversos momentos históricos e interage com a câmera (e seu público). Por meio de uma narrativa performática e experimental acompanhada pela canção Kulu Sé Mama, de John Coltrane, o cineasta conta uma história complexa apenas com sua performance corporal.
Alma no Olho não é apenas um marco inicial para um movimento cinematográfico, ele é prova de que um cinema feito e protagonizado por pessoas negras não é só possível, como extremamente necessário. Um Cinema Negro como movimento político muito mais do que estético.
Terceiro ato
Orfeu Negro está disponível no Youtube. E Alma no Olho está no Vimeo.