Filmes de terror que exploram questões raciais estão se tornando cada vez mais comuns. Aqui no Cinema Preto, já conversamos sobre O que ficou para trás(2020) de Remi Reeks, que usa o horror como ferramenta para tratar dos traumas da imigração, e de Eve’s Bayou (1997) de Kasi Lemmons, em que o sobrenatural aparece como alternativa e solução. Mas é inegável que com o sucesso de Get Out (2017), produções audiovisuais que têm o racismo como artifício de terror para seus personagens negros viraram tendência. Por isso, vamos nos transportar para 1968 e assistir a um filme em branco e preto precursor desse “estilo”, A Noite dos Mortos-Vivos.
Por que assistir A Noite dos Mortos-Vivos?
O terror co-escrito e dirigido por George Romero tem premissa simples e eficaz: num dia comum na Pensilvânia, os corpos de pessoas mortas são reanimados e começam a atacar todos os moradores da região. Nessa situação caótica, Barbra (Judith O’Dea) busca abrigo em uma casa de fazenda onde encontra Ben (Duane Jones), o herói da nossa história.
Segundo seu criador, o filme não foi concebido para falar sobre raça. Romero afirmava que Duane Jones era simplesmente o melhor ator que eles encontraram para interpretar o protagonista e que o roteiro não foi adaptado para um ator negro. No entanto, mesmo que essa não fosse a intenção, A noite dos Mortos-Vivos é um filme de terror com um protagonista negro sendo aterrorizado por uma horda de pessoas brancas, produzido no fim da década em que o Movimento dos Direitos Civis transforma a realidade norte-americana e lançado meses depois do assassinato de Martin Luther King-Jr. Ou seja, não entender esse filme sob a perspectiva racial não é apenas quase impossível, como uma tentativa inútil.
O que mais me impressionou ao assistir ao longa foi notar que Ben não é escrito para ser um personagem agradável ou simpático. Não quero dizer com isso que o protagonista não seja amável ou digno de apoio dos espectadores, pelo contrário, mas Ben não age – em nenhum momento – para apelar para a bondade branca como é comum em filmes dessa época (In the Heat of the Night, por exemplo) ou em produções audiovisuais que se propõem a retratar a vida de pessoas negras na década de 1950 e 1960 (estilo Histórias Cruzadas e filmes que afirmam “negros também são gente”).
Então, quando vemos Ben falando alto ou dando um tapa numa mulher branca, mesmo todas as ações sendo justificáveis dentro da dinâmica do filme, a sensação é de ver algo revolucionário porque o primeiro instinto de uma pessoa negra rodeada de pessoas brancas é tentar parecer não ameaçadora, como forma de proteção. A Noite dos Mortos-Vivos nunca pede isso ao seu herói.
Ao invés disso, Ben existe apenas como alguém que está tentando sobreviver a um apocalipse zumbi. E, honestamente, o Ben de Duane Jones é um dos poucos personagens que eu confiaria nesse cenário. Um personagem racional, com habilidades manuais para proteger uma casa, que se mantém calmo cercado por pessoas surtando, alto, forte e bonito? Sim, eu deixaria minha vida nas mãos desse homem.
A Noite dos Mortos-Vivos não seria um filme tão bom sem o trabalho de Duane Jones. Se Barbra é o convite de boas-vindas, Ben nos mantém conectados, instigados e torcendo pela possibilidade de sobrevivência. A assertividade, segurança e vigilância constante notadas em cada decisão do ator são essenciais para manter a narrativa centrada e equilibrada. Assim, não é prepotente dizer que é por Duane Jones que A Noite dos Mortos-Vivos se mantém um clássico que merece ser visto, revisitado e celebrado.
Terceiro ato
A Noite dos Mortos Vivos está disponível no Mubi.
Filmes de terror e questões raciais é uma dessas discussões sem fim quando o assunto é cinema e representatividade. Com o lançamento de Them da Amazon Prime, o tema ganhou mais força nesse primeiro semestre. Eu não vi a série e, honestamente, acho que não vou chegar a assistir pois o mundo tá bem assustador e eu tô tentando manter alguma saúde mental. Mas quero destacar alguns textos sobre o assunto:
O livro Horror Noire escrito por Robin R. Means Coleman é essencial para entender a presença de corpos negros em narrativas de terror ao longo dos anos. Há também um documentário lançado em 2019 que usa o livro como base.
A crítica Angélica Bastien tem textos excelentes sobre produções de terror recentes: Them, Bad Hair e Antebellum. Tudo em inglês, infelizmente.
Em português, a Andreza Delgado fez um fez comentário muito objetivo e assertivo sobre a série.
Pós-crédito
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Elenco principal: Duane Jones e Judith O'Dea
Direção: George A. Romero
Roteiro:George A. Romero e John A. Russo
Edição: George A. Romero
Fotografia: George A. Romero